Crônicas da vida – Hidratado

Dia dos Pais passou, faz alguns dias.

E fiz aniversário, recentemente.

Faz muito tempo que não faço comemorações com muita gente.

Mas já fiz. Algumas.

Tudo tem seu tempo determinado – Eclesiastes 3:1.

Comprei um bolo. 

Paguei meu presente. 

O parabéns quase não chega ao final. 

O “é big” saiu com dificuldade. 

Queriam comer logo o bolo. 

Tá bom.

Passados alguns dias, chegou um dos presentes, combinando Dia dos Pais e aniversário, que minhas filhas escolheram.

Hoje é assim. 

Chega no dia que dá. 

Ainda mais com pandemia.

Ainda mais com greve dos correios.

Não tem problema.

Hoje, para mim, o presente é lembrar… escolher alguma coisa… procurar… encomendar…

Hoje, eu ainda tenho que pagar, mas, podendo, o faço com gosto.

Meu pai também teria feito aniversário este mês – teria feito 90 anos.

Meu sogro também não chegou a fazer aniversário este ano. 

Em julho, teria feito 75 anos. Complicações decorrentes da COVID.

Para nos dar perspectiva, nos ensinam que “isso também passa”.

Tanto o bom, como o ruim.

Sem perder o sentido do frase original, me permito uma pequena variante.

A COVID passa. Mas, de vez em quando, leva.

Meu sogro Olivar era um bom homem.

E a COVID levou.

Sou da linha que a morte não torna ninguém santo.

Pela regra da igreja, é pré-condição, mas não é o bastante.

Dele, admirava certas posturas, embora não tivesse pretensão em tê-las como meu comportamento.

Talvez alguns não entendam isso, mas isso é possível.

Posso não almejar ter uma forma de proceder, por convicções pessoais, mas posso respeitar e admirar quem a tem.

Algumas coisas simplesmente não são para algumas pessoas.

Ou as fazem de coração, ou não devem fazê-las.

Nenhum comportamento é sincero se não vier do fundo do seu próprio coração.

Admiro a natureza e o belo criado por Deus, mas não pularei de uma ponte, em bungee jumping.

Olharei lá de cima, com os dois pés fortemente cravados no concreto.

Não farei drama. Não direi que meu sogro era como um pai para mim.

Até porque eu tive meu pai, por muitos anos, e ele sempre foi tudo que eu precisava.

Mesmo quando eu não sabia disso.

E eu sempre quis somente o que fosse meu.

Muitas pessoas me trataram muito bem, mas eu sempre deixei o papel de mãe vazio, já que Deus quis assim.

Só citarei o nome de minha madrasta Nicolina, que foi a companheira de meu pai por décadas, e de quem ele só falava bem, mas muitas me trataram com doçura e atenção.

Algumas pessoas conversavam comigo as coisas que sua própria família teimava em não ouvir.

Algumas faziam a comida que eu gostava sem que eu nunca pedisse.

Algumas me educaram e estiveram na minha escola, várias vezes.

Algumas se preocupavam comigo e me enalteciam a ponto de causar ciúmes nos filhos.

Algumas fizeram supermercado comigo quando eu não sabia diferenciar manteiga de margarina.

Muitas pessoas foram boas comigo, e sou grato a todas.

Mas uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Simples, assim.

A satisfação por A não invalida a importância de B.

Como, tendo a figura soberana de meu pai, sei que meu sogro era um bom homem.

Me ensinou algumas coisas, e sempre foi uma pessoa acessível, sóbrio e confiável.

Reservado, educado e solícito. 

Um homem simples, que demandava um espaço na vida muito menor do que a pessoa que ele era, e que ele seguramente merecia.

Brincava eu às vezes, dizendo que ele era um passarinho.

E sempre foi um companheiro muito presente para minhas filhas.

E se não houvesse nada mais de positivo – e havia – só por isso ele teria minha gratidão eterna.

Mas, voltando ao presente. E ao meu presente.

Nesse momento, só chegou o primeiro. 

Como disse, vivemos reféns dos serviços de entrega…

Uma garrafa de água. 

Minhas filhas querem me ver hidratado.

Isso elas tem em comum com meu urologista…

Eu usava algumas garrafas delas. 

Parece que jovens adoram dar esses coisas – deve ser uma opção de presente fácil.

Elas tem inúmeras. E sempre me cederam.

Mas eu bebo muita água, e as delas, de 400 ml, não davam nem para saída… 

E tome de encher de novo, e de novo…

Então, elas compraram uma de 750 ml.

Esse é o real presente, disse para elas.

Não a garrafa. 

Mas a observação. 

A identificação da necessidade. 

O processo de prover.

Pagar, é o de menos.

Fiquei feliz pelo processo.

Eu dava presentes para o meu pai, principalmente conforme fui envelhecendo.

Dei um jogo de barbear, desses de lâminas, preto e dourado.

Dei uma par de sapatos, desses de cromo alemão.

Dei relógios, de marcas famosas e com várias pulseiras, para trocar conforme a roupa.

Comprei aparelhos de telefone, desses com ramais.

Comprei televisão.

Comprei ar condicionado.

Comprei roupas.

Tudo ficou aí. 

Alguns desses presentes, ele nem usou. 

Outros, ele me devolveu, anos depois.

Ele sempre dizia – “eu só quero um beijo e um abraço.

Sempre fiquei feliz de presentear.

E algumas coisas, que ele jamais vislumbraria na vida dele, ele acabou gostando.

Mas ele nunca pedia nada – “eu já tenho tudo, meu filho.

Mas hoje vejo que ele tinha razão – não importava o valor, importava a serventia.

E de vez enquanto, eu acertava.

E a surpresa dele era minha maior alegria.

O “copão” é bom. 

Beberei mais água, com menos reposição.

Mas a alegria maior – e meu pai estava certo – é constatar a observação.

Foi o interesse.

Foi o querer fazer de minhas filhas.

Foi o “beijo e o abraço”.

Por escolhas da vida, por muitos anos, fiquei sem o “beijo e o abraço”.

Mas, nessa condição, eu era o filho festejado, ao chegar na casa dele.

Quando estava lá, se fazia os pratos que eu quisesse comer.

Me levava no carro dele para onde eu quisesse ir.

Podia ver TV, dormir e usar o ar condicionado quanto quisesse.

Nunca me deixou pagar uma feira, uma conta de luz, uma gorjeta de supermercado.

Respeitei isso. 

Eu já ganhava bem mais, mas ele parecia muito feliz com isso.

Mas, sei que era por eu ser visitante ocasional.

Nunca me iludi. 

Aproveitava o nosso tempo de qualidade, aproveitando cada segundo “do beijo e do abraço” que normalmente não podia ter.

E sempre fui muito grato à minhas irmãs, porque estavam ali, pelo que fizeram por meu pai.

E muito fizeram por mim, na minha meninice, sem que eu não tivesse nem noção.

Gratidão eterna.

Porque hoje, vejo, cada vez mais, o quão importante é tal “do beijo e do abraço”.

É o amor de quem aceita você como você é, com todas as falhas.

É o respeito de quem entende as diferenças, sem querer anular; quando muito, educar.

É o cuidado por quem se gosta.

É a preocupação com a tranquilidade e a segurança de quem se preza.

É observar que a garrafa de água do pai cabe pouca água.

E que ele precisa ficar hidratado.

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