Nos primeiros dias de novembro de 2003, estivemos numa loja de roupas na área comercial de Belém, pois minha esposa Márcia precisava comprar algumas peças. Foi a primeira vez que estivemos junto com Amanda nesta loja, e nesta fase da idade dela (quase três anos) todo passeio é uma festa, pois as descobertas se multiplicam a cada fato que acontece.
Antes de subirmos para o segundo andar da loja, ficamos um tempo no primeiro, enquanto minha esposa olhava as vitrines, tempo suficiente para que Amanda se afastasse um pouco de nós, e fosse ter quase à rua, quando então observei que ela estava com uma cara de espanto.
Intrigado, me aproximei dela e observei que do campo de visão dela, dava para ver um mendigo sentado na rua, e o mesmo não tinha pés. Amanda virou pra mim e disse – “Olha, pai, ele não tem pés”. Tentei dar uma explicação adequada à situação e a idade, mas fiquei intrigada com a forma dela olhá-lo.
Ela estava com cara de Buda.
Como na história de Sidarta Gautama, vivendo enclausurado nos limites do palácio, que se assustou quando foi a rua e viu pessoas doentes, feias, em trajes modestos, carentes de saúde e tudo o mais.
Que Deus me perdoe, mas o meu pouquíssimo nobre sentimento experimentado foi de uma confusa alegria. Lamento a dor do mendigo, mas minhas crenças me fazem crer na justiça de Deus, mesmo que não entendamos os fatos.
Minha filha não vive num palácio, nem é protegida além dos limites das imperfeições do mundo. Mas estuda num colégio com salas com menos de dez alunos, vai para a escola num veículo refrigerado, tem mais brinquedos do que tempo para desfrutá-los, nunca chegou a saber o que é um sapato apertado, já diz que quer ver no computador o “w” do sítio, assiste desenhos educativos canadenses na televisão e já fala em dvd com a naturalidade de quem é acostumada a ter as coisas materiais em casa, além de exibir uma firmeza ante o mundo de quem sabe que tem a família por trás.
Quando eu conheci um mundo diferente do meu, já um pouco mais velho do que ela, eu fiquei com cara de bunda. Não sabia que qualquer um poderia ter telefone, que os carros poderiam parar em frente a nossa porta, que todos os livros escolares poderiam ser comprados já em janeiro e que quando algo desse errado, eu deveria falar com minha família. Além de mil outras coisas.
Nós andamos pra frente. Tomara que meus netos vejam o mundo com olhos e experiência melhores ainda. Pelo menos com cara de Buda, mas jamais de novo com cara de bunda.