Crônicas da vida – Crianças no parque

            Uma vez, uma pessoa me falou sobre namorados possessivos, que tentam anular a expressividade das pessoas, reduzindo suas companhias a nulidades sociais, como se o mundo fosse feito só por duas pessoas. Arroubos de juventude, que acham que o mundo está inteiro a sua disposição, e tudo acontece conforme sua vontade e gosto. Pensando bem, isso nem é tão arroubo juvenil… muitas pessoas, já na casa dos “inta” e até dos “enta”, acaba errando assim… 

            Depois, me lembrei do meu tio José Maria. Homem alegre, do tipo que sempre gostou de estar cercado por pessoas, sempre afável e bem humorado. Na minha infância, passada no Rio de Janeiro, era comum nos domingos ele juntar em sua TL branca (um dia houve um carro chamado TL…), seus filhos, eu, outros primos e por vezes um ou outro colega da rua, e saia com todo mundo para a Quinta da Boa-Vista. 

            E meu tio Zé se acomodava num dos bancos de cimento, com sua indefectível garrada de Antarctica, curtindo a sombra dominical. Nos espalhávamos em dois tempos. Os maiores se entrosavam nas inúmeras “peladas” existentes nos gramados do local. Eu e outros íamos passear no “Caminho do Tarzan”, nos labirintos, ver os bichos soltos, escorregar rampa abaixo, sentados em pedaços arrancados dos troncos das bananeiras. Os menores sentavam na terra, cavucando o chão com suas pás de plástico. 

            E assim a tarde prosseguia. Cada um imerso no seu próprio lazer, e meu tio sentado no seu banco. Vez ou outra até arriscava participar de uma “pelada”, mas o talento nunca lhe foi pródigo e a condição física já tinha ficado em algum lugar do passado… 

            Final da tarde, ele levantava e dava um assovio. Um único assovio, acompanhado de um gesto de mão, simbolizando que era para nos aproximarmos. Ninguém contestava. A gente se despedia dos colegas recém-criados, batíamos a poeira e caminhávamos tranquilamente para onde ficava estacionado o carro. Íamos sem reclamar, pois sabíamos que qualquer domingo estaríamos ali de novo. E assim o foi até que a adolescência nos fez criar novos grupos e atividades. 

            E onde entram os namorados possessivos nisso? No parque, meu tio nos deixava a vontade. Confiava que nenhum de nós arranjaria um briga, faria uma loucura, cometeria um imprevidência. Que apenas iríamos nos divertir, desfrutando da vivacidade típica da juventude. E confiava também que, ao nos chamar com seu solitário assovio, nós mesmos entenderíamos que já era tempo adequado de parar. 

            Mas o que ele realmente confiava era que, na tranquilidade do lar, era ele que recebia os abraços agradecidos de todos. Que quando a meninice começasse a ficar para trás, ele seria uma das pessoas a quem perguntaríamos sobre esse negócio complicado de gostar de alguém. Que quando fossemos tirar sangue no posto de saúde, era com ele que queríamos ir. Que na noite de Natal, ele sempre tinha um presente, mesmo que fosse uma caixa vazia com um papelzinho dentro, escrito apenas “Todo o carinho do mundo”. 

            Ele sabia que, mesmo na nossa meninice, saberíamos fazer bom uso de nossa liberdade. E nunca o decepcionamos. Um joelho ralado, um banho indevido, fazia parte do script. Nunca ninguém passou dos limites. Por isso mesmo que este ritual dominical repetiu-se por diversos domingos cariocas, ao longo dos anos. 

            Mas o que ele sabia mesmo, era que nas coisas realmente importantes, nas coisas realmente pessoais e íntimas, ele tinha todo o espaço do mundo. E ninguém tinha como roubar isso dele. 

            Lições simples, que a vida nos dá. Mas sem sempre aprendemos. Mas é bom falar nisso, pois sempre pode ser uma chance de alguém aprender alguma coisa. Antes que uma sucessão de erros acabe com o que eventualmente poderia ser um acerto. Ou não, como diz Caetano… 

            Crianças no parque. Deixe-as a vontade, confie nelas, mereça a confiança delas, e no final elas sempre voltarão pra você.

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