Ele estava numa casa, e era intensa a agitação em torno dele. Era algum tipo de reunião, com muitas pessoas chegando a todo momento. Muitos deles eram seus conhecidos, embora suas feições não fossem exatamente da mesma forma que ele estava habituado a vê-los.
Embora houvesse um clima de alegria, ele via nas cores das pessoas que nem toda aquela alegria era verdadeira. Muitos estavam envolvidos por problemas, mas aproveitavam aquele momento de relaxamento para tentar espairecer. Tentavam passar para os outros uma aura de realização e sucesso.
Um amigo dele, acompanhado da esposa dele, que era ela embora não fosse, saiu preocupado buscando a mãe, que era esperada mas não aparecia. Saiu apressado, esbaforido, nervoso. Assim que dobrou a esquina ela surgiu pela sala. Por vezes, quem mais procuramos está na nossa frente e não conseguimos ver.
Ele estava numa sala pequena, tipo um daqueles “quarto de bagulhos”, repleto de coisas, e uma delas era um pequeno estandarte, repleto de uns símbolos estranhos, algumas palavras em línguas estrangeiras e uns desenhos de figuras aladas. Achando bonito, ficou manuseando, embora não entendesse o que aquela pequena flâmula poderia querer dizer.
Logo em seguida, praticamente todos na casa, muito bem arrumados e perfumados, se aprontavam pra sair, e ele notou que estavam deixando pra trás um jovem, com evidente sinais de retardamento mental. Ele ficou confuso, meio atordoado, com aquela atitude coletiva. Ele estava ali se imaginando um convidado como os outros, mas viu que não poderia abandonar o local, deixando o rapaz sozinho.
Um amigo ficou com ele, mas a revolta tomou o seu peito, pela atitude desumana dos outros convidados. Como podiam fazer isso? Ele devia ser parente de alguém, afinal não apareceu ali do nada! Mas todos saíram, perfumados e alinhados, para se divertir. Ninguém se importava com quem deixou pra trás.
Enquanto ele ruminava essa raiva, outra pessoa apareceu. Não sabia de onde veio nem quem era, mas era mais um que não parecia ser quem era. Era mais jovem que ele, e ele o convidou a ir aos fundos da casa. E foram.
O outro disse “estou aqui para te mostrar o que você não entendeu, já que ainda parece ser cedo para que você consiga ver o que você olha”. O outro o levou até um poço e deu a ele uma cacimba e disse que era para ele tirar um pouco d’água. Ele o olhava enviesado, ainda ruminando a raiva, mas o outro insistiu “tire”.
E ele o fez. “Agora jogue no chão”. E ele o fez. “Quando você tirou, você acha que a água do poço poderia acabar? Claro que não, ela se refaz. Assim deve ser sua paciência. Use-a a vontade, e ela sempre estará num nível compatível com suas necessidades.”
“E quando você jogou no chão, você acha que ela se perdeu? Claro que não, ela foi absorvida e vai ser útil para alguém. Tanto o exercício da paciência pode enriquecer sua própria fonte, como servir para gerar novos focos dela em outros poços, hoje aparentemente secos.”
E sem dar nomes, o outro foi discorrendo sobre os problemas daqueles que saíram ricamente vestidos. Coisas inimagináveis, guardadas no seio da privacidade. Experiências difíceis, mas úteis ao crescimento. O outro disse “A vida é um aprendizado. Círculos paralelos no tempo. A sombra de um provoca consequências no outro. Recebemos o que fizemos, o que é justo. E não esqueça: quando sentir a sede que vem da injustiça, use o poço.”
Dito isto, o outro foi embora. Enquanto se afastava, ele ficou olhando, e teve a impressão de que algo estava mudando. Os cabelos do outro embranqueceram. A mão esquerda tremia levemente. Andava arrastado, usando sapatos baratos. Quilos adicionais se juntaram a cintura antes esguia. Puxa, agora parecia tanto com o pai dele…