Crônicas da vida: Meu pai não viu a pandemia

Meu pai não viu a pandemia. Não como nós.

Ele “viajou” – termo dele – há pouco mais de quatro anos, em março de 2017.

Pandemia era uma palavra no dicionário. Esquecida.

Quando começou, brincávamos.

Alguém espirrava e afastávamos as cadeiras.

Naquele tempo, ainda se podia brincar.

Ninguém imaginava o horror que estava por vir.

E fomos passando, com perdas e sofrimento.

Parentes, amigos e conhecidos morreram.

Eu fiquei internado onze dias. 

E só piorou.

Imagens impactantes.

Falta de recursos.

Erros de avaliação.

Mortes e mais mortes.

E cada número era o amor de alguém.

Tempos difíceis. Muito difíceis.



Tive um sonho ruim, uma noite dessas.

Uma sensação de desorientação e medo.

Deitado, vi primeiro aqueles pés, usando sapatos baratos.

Levantei os olhos e aquele homem apontava para cima.

Lá em cima, o sol, lutando para irromper entre as nuvens.



Meu pai era um brincalhão.

Próximo a passagem, era uma pessoa simplória.

A luz desta vida se apagava ante nossos olhos.

Morreu dormindo. Como acho que morrem os bons.

Mas sempre me lembro do seu peculiar bom humor.

Quando, em tempos nebulosos como esses, eu gravemente dissesse para ele, “ninguém sabe o dia de amanhã, pai”, ele jocosamente diria – “Sexta-feira. Pois hoje é quinta, meu filho.

Meu pai sempre prometeu o sol se o sol saísse.

E nunca me faltou sol.

O calor dele ou a expectativa por ele.

Quando eu não o tinha hoje, eu sabia que um dia ele viria.

Não há  noite que dure para sempre.

Meu pai não viu a pandemia. Não como nós.

Mas tenho a genuína sensação de que agora ele está vendo.

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