Crônicas da vida – O relógio da sala e o dente da caçula.

Recentemente, por força de compromissos profissionais, tive que passar uma semana na cidade onde meu pai mora, e aproveitei para ficar hospedado na casa dele. É uma casa simples no subúrbio de uma grande cidade, mas que, pelo menos na ótica deles, satisfaz todas as necessidades de quem já está no entardecer da vida.

Na pequena sala de sua pequena casa, onde tomei meu cafés e jantares durante minha estada, eles tem um relógio enorme pendurado na parede. Visibilidade perfeita, gosto duvidoso e preço seguramente pequeno. No silêncio da manhã, aquele relógio enorme chamou minha atenção. Não pelo barulho, visto que é silencioso, mas pela rapidez com que o ponteiro dos segundos dá um giro no mesmo.

Pensei comigo – “esse relógio deve estar errado, ele gira rápido demais.” Mas, dia após dia, como não tenho relógio de pulso, a conferência entre o enorme relógio e a marcação digital do meu celular, penosamente retirado do bolso da calça, me fez acreditar que o relógio, a despeito dos seus “segundos vorazes”, estava inapelavelmente certo…

Meu pai sempre teve sorte com relógios baratos. Relógios grandes, vistosos, do tipo que nordestino antigamente gostava de usar, de marcas conhecidas, seguramente cópias pois os originais estavam fora do seu poder aquisitivo, funcionaram sem problemas em seu pulso ao longo dos anos.

Mas os mais emblemáticos para mim sempre foram os relógios “do balde”. Nessa fase da vida, eu já tinha condições de comprar meus próprios relógios, e tinha alguns de marcas bem conhecidas, já nem tão baratos assim. Mas toda vez que eu o visitava, com receio que meus relógios “vistosos” chamassem a atenção da malandragem, ele mandava eu ficar andando com dos seus, “do balde”.

Porque do balde? Os relógios eram cópias piratas de um modelo emborrachado japonês, que fez muito sucesso nas décadas de 80 e 90. E eles eram vendidos, no comércio de rua do bairro do meu pai, dentro de um balde. Assim o eram para provar que eram realmente a prova d’água. Você escolhia, tirava do balde, secava e botava no pulso.

Quando era o dia de eu ir embora, ele nunca aceitava o relógio de volta. Sempre mandava eu levar, pois afinal, eram “do balde”… Pois os relógios do balde na maioria das vezes duraram mais que meu relógios de marca; quebravam as pulseiras, visto que eram feitas de borracha vagabunda, mas a “máquina” continuava funcionando, ao longo dos anos…

Mas, voltando ao relógio da sala do meu pai, eu ainda estava intrigado – como é que esse relógio pode estar certo, se ele anda tão rápido? Até que um dia desta semana que estive com ele, algo ocorreu. Por causa do trânsito horrível da cidade onde ele mora, tenho que sair uma hora e meia antes do meu compromisso, pois senão chego atrasado ou não consigo estacionar. Então eu saía da casa dele por volta das 07:30 da manhã, antes da hora que meu pai, com sérias dificuldades de locomoção, já tivesse se posicionado no local onde passa parte das suas manhãs, acomodado em uma cadeira junto ao portão da rua.

Mas lá pelo meio da semana, já um pouco atrasado em relação ao meu horário ideal de saída, pedi a sua benção e me despedi apressadamente, enquanto meu pai ainda estava no banheiro. Eu já estava passando pelo portão quando escutei a voz de minha madrasta vindo lá de dentro da casa – “Carlo, espera que teu pai quer te ver sair.” Como já estava no carro, manobrei para sair e o esperei.

Ele chegou à grade do portão, e com visível dificuldade, se apoiou na mesma. Nos olhamos pelo vidro sem película do carro. Com esforço, tirou uma das mãos da grade, para poder me acenar em despedida. Senti a alegria nos seus olhos, mas também a urgência, pois era visível o quão penoso era aquela situação de equilíbrio instável para ele.

Houve um tempo em que tínhamos, tanto eu como ele, toda a saúde e todo o tempo do mundo. E quantas vezes, na pressa da minha meninice, entrava em casa correndo, sem ao menos lhe pedir a benção. Na adolescência, imerso em minhas próprias expectativas, mal partilhava jantares com ele, passando praticamente reto para o quarto, seja vindo da bola ou da escola. Já como visitante ocasional, em uma vez que cheguei de viagem e saí direto com meus amigos, ele cunhou a frase que virou folclore na minha família – “Pai, não leva a mal, leva a mala…”

E hoje, atesto que o relógio barato da sala do meu pai está certo. Tanto na exatidão das horas como na constatação que o tempo realmente passa rápido. Alonguei ao máximo aqueles segundos no portão, mas ele precisava se sentar e eu precisava ir embora. Na sala, ao fundo, por trás dele, o ponteiro dos segundos do relógio barato do meu pai seguia seu ritmo frenético, não nos deixando esquecer que o tempo realmente passa rápido…

Um dia, um de nós dois não estará mais aqui. E em algum momento do futuro, o outro não estará também. Os homens de minha família costumamos ser longevos, mas não somos eternos. Eu mesmo, já começo a contar o meu tempo: ontem, dia 04 de novembro de 2011, caiu o primeiro dente de leite da minha filha caçula. O sorriso dela hoje já tem uma “janelinha”. Há pouco mais de seis anos, ela nasceu. Ela andou, falou e começou a ler. E agora perdeu o primeiro dente. Nada segura aquele ponteiro dos segundos…

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