Crônicas da vida – A palavra leve na explicação do pesado jugo

Para quem não lembra, jugo é aquela peça de madeira que fica no pescoço do boi para que ele puxe o arado.

Aqui, uso para fazer uma analogia com as dificuldades que encaramos ao longo da vida – muitas vezes, somente a fé em um Deus justo e bom para impedir que a revolta tome conta do nosso coração. De algumas coisas, somos inapelavelmente responsáveis; de outras, enfrentamos sem compreender, muitas vezes somente com a força dos que não tem como se esconder do problema. Sem nenhuma galhardia ou heroísmo.

Ouço neste momento a música Epilogue, do tecladista japonês Kitaro.  Sempre sonhei que este tipo de música é o som que se ouve quando o vento passa pelas árvores – não aqui nesta vida, mas em algum belo e formoso lugar para onde um dia todos nós iremos.

Foto com o pai em agosto de 2008A saúde do meu pai piorou mais um pouco.  Treze anos após o derrame que transformou o homem que eu conhecia, parece que o corpo começa a dar sinais que a luta é cada dia mais árdua. Talvez seja pela simples decrepitude da matéria física; mas eu prefiro acreditar na caridade absoluta de um Deus de amor – o fato é que aos poucos, talvez até para o próprio conforto dele, cada vez mais ele está naquela zona estranha onde por vezes as moradas celestiais se confundem.

A mãe do meu amigo Jorge Galvão, senhora que já não está mais entre nós, próximo do fim de seus dias conversava com um menino que só ela via, que dizia coisas belas para ela e a fazia ficar tranquila. Quem teria coragem de dizer que ela estava louca? Não vemos o amor, e ele seguramente existe…

A tristeza, a frustração, a impotência; tudo é muito grande – escrevo para alinhar as ideias e aliviar o espirito. Minhas filhas me dizem “não fique deprimido”, “seja forte”.  Estou tentando. Não é hora de culpar ninguém, não é hora de rosnar com fúria contra Deus, não é hora de pensar no “como poderia ter sido se” – mas ficar triste, isto é meu direito.

Este é o pesado jugo – enfrentar a distância, ante uma impotência desesperadora, a existência de alguém amado seguir seu curso, prosseguindo nas etapas naturais da vida. Acredite: você lerá isso centenas de vezes e será generoso nos seus sentimentos; mas viverá isso uma única vez e sentirá a angústia apertar sua alma de um jeito único.

Minha esposa Márcia tem conversado com minha madrasta e minhas irmãs. Conversou com um tio dela, que é médico.  É dela a palavra leve na explicação do pesado jugo. Com o melhor jeito possível ante uma situação como esta, ela me explica que a luz de meu pai está se apagando. Como uma lâmpada que já brilhou o suficiente.

Meu pai nunca reclamou de nada comigo. Nem com saúde,  nem sem saúde. Agora, com menos capacidade ainda de comunicação, não sei bem o que ele pensa das coisas. Nos últimos tempos, meu pai sempre falou quando quis, e do que quis. Aos poucos (na verdade, ao longo dos últimos treze anos, com ênfase nos dois últimos) ele foi diminuindo antes os meus olhos.

Menos mobilidade, menos comunicação, menos discernimento, menos visão, menos interação. Estou procurando ter muita confiança na caridade divina, tentando acreditar com toda a fé e razão que norteia meus credos religiosos, que toda perda que ocorre desse lado seja para minimizar o sofrimento dele – sofrimento que me parece a injustiça pintada em cores vivas.

Para mim, meu pai é o melhor homem do mundo. Honesto, trabalhador, íntegro, bem humorado, solícito, responsável. Simplório nos conhecimentos, mas sabendo ensinar o que era realmente necessário. Mesmo na divergência, claro na transmissão de suas mensagens. Firme o suficiente para nunca precisar ter batido em mim, e mesmo assim ser sempre alvo do meu respeito. Generoso para, afrontado pela demonstração do conhecimento que ele proveu ao filho, rir em silêncio… Hoje especulo que ele deve ter pensado “esse doutorzinho sabe qual é a capital do Afeganistão e acha que já conhece tudo da vida…”  Ou algo semelhante a isso – afinal, ele nunca soube que existe um país chamado Afeganistão…

Hoje de manhã, depois de deixar Glória na aula, liguei o rádio para ouvir algo – o silêncio não tem sido um bom companheiro nessas últimas horas. Na programação passava o programa “Retrô”, na Unama FM. Tocava uma música do ABBA – The winner takes it all.

O que é o vencedor? Conheci homens ditos grandes socialmente. Li sobre líderes que salvaram empresas e nações. Soube de exemplos de superação nas mais diversas áreas. Talvez seja pequenez no pensamento, ou um casuísmo paternalista, mas vencedor é quem ganha a corrida na pista que a vida lhe reservou. Meu pai é um vencedor.

E o que é tudo? Vi comendas coladas no peito, nomes colocados em fachadas de fundações, gente com mais dinheiro do que é possível gastar com sabedoria. Espero que tudo seja aquilo que dá genuína satisfação às pessoas. Espero que no caso do meu pai, ele tenha conseguido o tudo dele. Ele diz que sim. E espero que eu seja parte do tudo dele. Ele diz que sim.

Com ele já doente, estive na casa dele há alguns anos. Sentado na garagem, ele olhava a rua, um tanto quanto alheio ao que eu falava com ele. Eu lia o jornal, e procurava comentar sobre tudo, buscando algum tipo de interação. Mesmo com pouco sucesso, eu não parava de falar. Tagarelava, tagarelava, tagarelava – polícia, futebol, política, atualidades. Nada despertava interesse dele. De repente, ele virou e disse – “Você é um filho muito bom”.

Pano rápido. Lágrimas nos olhos. Felicidade no coração.

Fim da história. Dessa história. Afinal, meu pai ainda está por aí.

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