Crônicas da vida: O primo amigo

Nestes primeiros dias de 2014 tenho pensado repetidas vezes em meu primo Isaac, Isaac Farias.

Isaac foi o mais próximo que eu tive de um irmão na minha infância.

A vida me deu duas irmãs, Marli e Marluce. Amo muito minhas irmãs. Passamos por poucas e boas nesta vida, por dificuldades e alegrias, por altos e baixos. Ainda passamos, mas o fato de eu morar em cidade diferente da delas, diminui muito o nosso nível de interação. Para as coisas boas, mas também para as ruins. Eu, por exemplo, não sei o que é ter uma briga com minhas irmãs em toda a minha vida adulta… morram de inveja…

Com minhas irmãs, sempre que posso estar com elas, ou falar ao telefone, me esforço para que seja um “tempo de qualidade”. Não nos furtamos de tratar dos problemas, mas eu sempre foco na leveza e qualidade.

E eu me divirto muito com elas.

Minhas irmã mais nova sabe o preço de um ovo. Se a galinha bota um ovo de cada vez, porque não se pode comprar um ovo de cada vez? A gente ri disso…

Minha irmã mais velha me conta que certa vez foi a única passageira de um ônibus. Quem disse que ela jamais iria andar com motorista em um carrão exclusivo, com motor Mercedes? A gente ri disso…

Mas voltando ao Isaac, meu primo. Ele faleceu há alguns anos. Não sei a causa. Mas morreu jovem; ele era um ano mais velho do que eu. E ainda faltam alguns anos para eu chegar aos cinquenta. Logo…

Nestes primeiros dias do ano, ouvi muito uma rádio de internet exclusiva de Beatles. Eu gosto, mas Isaac gostava muito. No início dos anos 80, comprava discos (LPs de vinil) com seu parco salário de menor aprendiz do Banco do Brasil. Conhecia a história das músicas. Cantarolava algumas. Baixista da Assembleia de Deus, sabia replicar alguns arranjos de Paul McCartney.

Tenho minhas convicções religiosas, e acho que quem está “do outro lado”, fica feliz com a lembrança e pensamentos carinhosos. E, dentro de certos limites e permissões, se aproxima das pessoas queridas. Talvez meu primo tenha estado próximo estes dias. Não sei porque, mas isso também não importa.

Como falei, na infância, foi o mais próximo que tive de um irmão. Depois cresci e fiz amigos que também foram como irmãos, privilégio cada vez mais raro com o passar dos anos. Tenho excelentes amigos acumulados ao longo das vida, alguns deles também queridos como irmãos, mas na infância este cara foi o Isaac.

Quando pequenos, brincávamos em minha casa. Aquelas típicas brincadeiras de moleque: pique, corrida, carrinho, etc. Isaac chegava com seus irmãos (Abraão, mais velho e Ary, mais novo). Ao lado de minha casa, morava minha tia-madrinha, e meus primos menores, Geraldo e Marcos, também se juntavam a nós.

As vezes eles iam lá só para comer as goiabas, que nasciam generosamente em meu quintal, mas eu nem ligava. Gostava de tê-los lá.

Crescendo um pouco mais (bem pouco, na verdade…) começamos a andar juntos, pela proximidade da idade. Conto para minhas filhas que com sete, oito anos, tenho lembrança de ir de ônibus para a casa da minha vó materna, em Irajá. E sempre conto que não ía sozinho, ia com meu primo mais velho. Um ano mais velho… Esse primo era o Isaac.

Sequer alcançávamos os balaústres. Íamos nos esgueirando entre os adultos, apoiados nos bancos, Dependendo do horário, o ônibus estava incrivelmente cheio. Pessoas nos olhavam com um misto de surpresa, curiosidade e acho que até pena. “O que estes dois meninos mirrados fazem sozinhos no ônibus?”, imagino que alguns pensavam. Mas a gente nem ligava. Quando dava para sentarmos juntos, conversávamos animadamente. Quando víamos a fábrica de cimento, sabíamos que estávamos chegando.

Não passávamos “por baixo da roleta”. Mesmo magros, nunca “passamos juntos”. Nunca demos calote. Isaac tinha uma integridade que a despeito da igreja, acho que já nasceu com ele. Não sei detalhes da vida adulta dele, mas sempre o vi desta maneira. E ele nunca se mostrou diferente para mim.

No final da quarta série, participamos juntos do Festival da Canção da Escola IV Centenário, onde estudávamos juntos. Cantamos juntos a música “Menina dos olhos azuis”. Lembro que na criação da música, em cada estrofe, Isaac criava os dois primeiros versos, e eu me “virava” para criar os dois últimos, que além de rimar, tinham que fazer sentido…

Fomos muito aplaudidos. Aplaudidos por gentileza, pois provavelmente fomos um desastre… Não ganhamos nada, mas ficamos com essa lembrança divertida para toda a vida.

Já “molecotes”, gostamos da mesma menina. Mas nem isso criou conflitos entre a gente. Afinal, nenhum dos dois nunca teve coragem mesmo de chegar perto dela…

Adolescentes, ainda próximos, entramos numa fase de discussões. Mais ou menos na mesma fase que compartilhávamos a simpatia pela música dos Beatles, sua fé cristã era frequentemente confrontada pelos meus questionamentos, normalmente com fulcro na questão da vida extraterrestre e no lirismo dos ensinamentos bíblicos.

Mas nunca brigamos por causa disso. As vezes eu chegava empolgadíssimo, com uma questão nova sobre algum ponto bíblico, com meus livros de Erich von Däniken debaixo do braço, as vezes até acompanhado de alguns outros amigos, mas o Isaac nem se abalava. E nem se enervava. E assim, conversávamos por horas…

Mas com o crescimento, fomos  nos afastando. Nossos interesses divergiam, nos focos destoavam. Afinal, nós eramos pessoas diferentes. Muito diferentes.

Assim que a idade permitiu, Isaac entrou no Banco do Brasil, como menor aprendiz. As vezes eu estava jogando vôlei ou futebol depois da escola, e lá vinha Isaac, com o uniforme azul e sapatos Vulcabrás enormes, chegando do trabalho, Naquela época, nenhum dos meninos trabalhava. Um ou outro era “office-boy”. Mas o meu primo não: ele era menor aprendiz do Banco do Brasil!!!  E ele sempre parava e a gente conversava um pouco.

Com a vida, fomos nos afastando e nos vendo cada vez menos.  Entrei na Escola Técnica, e o estudo tomava quase todo o meu tempo. Lembro que nesta época um dos meus amigos me chamava de “Conde”. Kléber, o tal amigo, me constrangeu várias vezes me chamando de Conde, com uma seriedade enorme e um servilismo feudal, dentro de ônibus, em lanchonete, na praia, etc. As pessoas viravam o pescoço, olhavam intrigadas, etc. Mas ele me chamava de Conde por causa do Conde Drácula, já que eu só aparecia de noite!!!

Me formei no Ensino Médio, mudei de cidade e o resto é outra história: cursei Administração e Informática, trabalhei na Transjuta (uma empresa familiar), no grupo Importadora, no grupo Vale do Rio Doce, no grupo Telebrás e desde 1995 estou no Judiciário Federal. Me casei com a Márcia, tive minhas filhas, fiz minha pós-graduação, toquei minha vida.

Soube que Isaac tinha feito um concurso e estava trabalhando nos Correios, como carteiro. Pensei na figura daquele homem magro carregando uma bolsa pesada o dia inteiro, mas depois esqueci. Alguns anos depois, fiquei sabendo que ele tinha sido tirado do serviço externo, pois ele tinha “ombros caídos”. Nunca soube se isso era alguma molecagem dos irmãos ou se foi algum tipo de concurso interno ou promoção, mas a informação é que tinha saído das ruas.

Nunca mais vi meu primo Isaac. Quando ia ao Rio, de folga, ao andar pela vizinhança da casa de meu pai, de vez em quando encontrava os irmãos dele. Abraão, falante e simpático, me contava sobre todos seus projetos e sempre fazia questão de me levar em sua casa. Ary, mais reservado, normalmente me recebia no mercadinho que ele gerenciava, mas sempre fazia questão de me levar de carro em casa – “o pessoal não te conhece mais”.

Mas Isaac nunca mais vi. Sempre pensava – “na próxima vez eu falo com ele”.

E há alguns anos minha irmã me disse que Isaac tinha morrido. Foi um choque, mas como todos os outros na vida, assimilei e segui em frente.

Mas agora no inicio de 2014 lembrei dele. Ouvi músicas dos Beatles em sua homenagem, o incluí de forma especial em minhas orações, estou escrevendo um texto onde falo muito dele. Senti sua presença amiga perto de mim.

Que ele tenha encontrado o Deus que sempre adorou e chegado ao céu que descrevia com tanta convicção.

E que ele me veja hoje e tenha me visto no passado da mesma forma que eu sempre o vi: o primo amigo.

Esta entrada foi publicada em Publicações. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário