Encontros com o mestre – Histórias interrompidas, mas não concluídas

O local era a beira de um lago. Um gramado verdinho, um terreno com uma leve inclinação. Um dia iluminado, um convite para se sentar e ficar preguiçoso, olhando o movimento. E assim, ele estava.

Um menino brincava, na beira do lago. Alegre, manipulava um controle, que fazia um bela miniatura de um barco fazer manobras diversas no meio da água.lago_similar_red

Lá pelas tantas, em um movimento mais ousado, para surpresa dele, lá no meio do rio, o barco virou. Ele nem sabia que isso era possível, mas o barco afundou. O menino ficou inconsolável.

Um casal o acudiu, correndo em sua direção. Não dava para ouvi-los, mas aos poucos as lágrimas e os soluços pareceram diminuir, e eles saíram caminhando tranquilamente pelo caminho que circundava o lago. Pelo carinho, deviam ser os seus pais.

O mestre comentou – Deve-se ter cuidados com suas coisas, mas não devemos dar valor excessivo para isso. A real alegria e as posses mais ricas se constituem das coisas que temos em nosso espírito, que é o que acumulamos de fato e levamos para toda nossa existência.

Concordo, Mestre, mas com apoio de papai e mamãe tudo fica mais fácil, né? Perdoe minha pequenez, mas sempre que vejo algo assim, entristeço, pensando nas privações que são impingidas a alguns, aparentemente injustas, gerando vazios impossíveis de serem preenchidos…

Mas seus pais lhe ensinaram muito. Para eles, sempre fizeram o melhor para você e deram tudo que achavam que você precisava, dentro das posses deles. As vezes, até fora das posses…

Você lembra da história que sua mãe contava, quando ela parava para pegar a água para você, sempre que você pedia?

Não. Não lembro.

Você se protegeu… ou foi protegido. A Providência nos preserva, mesmo ante a nossa incompreensão. Mas você se lembra de uma das conversas recentes com seu pai, ao telefone?

Lembro. Mas foi muito rápida. Como hoje tudo é muito difícil para ele, ele rapidamente passou o telefone, dizendo “toma, já contei tudo”.

Mas ele não me contou tudo. Errei, me precipitei, falhei, cometi injustiças, fui leviano. Algumas vezes me perdi, fiquei sem rumo, sem apoio. Até acabei achando o caminho, que espero que tenha sido o certo.  Mas, ficar sem os pais é igual a se perder no supermercado, quando criança. Só que é se perder para sempre.

No ponto onde estamos, ainda estamos muito longe do “para sempre”. Voltando, você entende então que ele realmente não te contou tudo?

Sim, com certeza.

Nem ela. Muito mais ainda vai ser contado. Esta é uma história apenas interrompida, mas não concluída.

Ele entristeceu, mas sentiu uma doce sensação de alento. Olhou em volta. Havia algo ali.

Mas ele ainda não consegue ver tudo. Um dia, verá.

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Crônicas da vida – Amanda Saraiva Damascena faz 15 anos

UnknownHoje, minha filha Amanda está fazendo quinze anos.  

O nascimento desta menina foi um dos dias mais felizes da minha vida.

E de lá para cá, vivenciei um turbilhão de emoções diversas que enriquecem o espírito de qualquer pessoa.

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Amanda sempre foi muito alegre, e sempre me fez rir muito. Seja com suas caretas, beicinhos e dancinhas, seja com suas tiradas impagáveis, seja com o humor estranhamento parecido com o das tias cariocas, seja com os trocadilhos infames, piadas absolutamente oportunas ou simplesmente seu sorriso maroto, com a cara totalmente coberta de tinta…

Amanda sempre foi muito agitada, e embora a paternidade tenha chegado em um bom momento da minha vida no quesito estabilidade, ela veio me encontrar alguns quilinhos acima do peso… mas mesmo assim várias temos fotos de nossas caminhadas, – na verdade, eu andando atrás dela – dos balanços de praça, das atividades na escola, de banhos de chuva e até de jogo de bola no quintal.

UnknownAmanda sempre foi muito carinhosa, e nos baixos da vida, sempre veio dar uma palavra de alento ou de tranquilidade. Por vezes, ela apenas ficava ali. Por vezes, falava alguma coisa surpreendente, terna ou simplesmente, tranquilizadora. E nos altos da vida, sempre doce e presente: lembrança das mais agradáveis sempre será a imagem daquela menina correndo para me abraçar, quando eu passava na porta…

Amanda sempre foi inteligente e criativa, com bom desempenho escolar, destaque nas atividades, com grande capacidade de criação de textos. Durante anos, manteve um blog, e sempre escreveu muito bem. Sempre chamou muita atenção em todos os lugares onde esteve. A timidez só chegou na adolescência, pois antes, exercia seu papel de sol sem o menor pudor…

SAMSUNG DIGIMAX A503Amanda sempre me deu preocupação, mas como não se preocupar quando amamos alguém, e tememos pela sua tranquilidade e segurança? Feriu o dedo na janela, pegou dengue, cortou o próprio cabelo, quase se perdeu dentro de shopping, passou uma faca na mão, ralou o joelho nos tombos da vida, machucou o quadril patinando… E agora ela está fazendo quinze anos. Persiste a alegria, a agitação, o carinho, a inteligência, o brilho e a preocupação. Em outros patamares, agora. O humor é mais elaborado, e minhas piadas idiotas já não fazem sucesso. O carinho persiste, mas manifestações públicas “queimam o filme”. A agitação está aí, mas um pouco mais podada pelas regras sociais. A inteligência… essa continua a mesma. E a preocupação… essa vai ser para sempre.

Foto_Dia_2011-12-10 07-14-46Mas fico feliz por Deus ter me dado esta filha, e ela continuar me amando.

Por esta fase da vida, ela já deve estar além daquele momento onde se nota que o pai não é um super-herói, não criou a vacina contra paralisia infantil, não fundou a Microsoft e nem vai poder prover todos os desejos e necessidades da filha. É apenas um gordinho de meia idade, uma pessoa comum que tenta manter as coisas funcionando. Isso se ela não achar coisa pior…

20141026_193549Mas, mesmo assim, ela continua me amando e enchendo minha vida de alegria.

Quando eu era bem mais jovem, alguma coisa ali entre o fim da infância e o início da adolescência, eu fantasiava que tudo que eu escrevesse iria virar ouro depois que eu não estivesse mais aqui. Literalmente. Assim, eu iria deixar essa riqueza para a humanidade. Então, eu escrevia com o dedo nos degraus do escorregador, nas paredes das casas, nas laterais dos carros, em todos os lugares que eu podia.

Hoje, um pouco mais lúcido e muito menos lúdico, sei que isso não vai acontecer. Mas, não tem problema. Deixarei coisa melhor, muito melhor. Pois hoje, parte da riqueza que deixarei para o mundo está fazendo quinze anos.

Te amo, filha.

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Encontros com o mestre – justiça e importância é um conceito relativo…

“Onde iremos hoje ?”, perguntou ao mestre.

O mestre sentou no chão, fez um gesto para que eu fizesse o mesmo e disse: Hoje, vamos apenas… lembrar. As vezes, muito do que precisamos já está conosco, ou simplesmente, já foi entregue em nossa porta.

Lembra daquela história da viagem de ônibus, que você tantas vezes contou para um monte de gente, não raro arrancando muitas gargalhadas ?

Lembro, foi a primeira vez que eu vi alguém literalmente “sumir na poeira”…

É verdade, – disse o mestre – as pessoas sempre riram muito, mas você realmente lembra dos detalhes daquela viagem ?

Como história para contar, era ótima, mas a viagem foi realmente um inferno… perdemos o ônibus e não sabíamos o horário do próximo, ficamos na rua a noite toda esperando… o cansaço era tanto, que dormimos no chão, mas com um de nós sempre acordado, para não levarem nossas coisas… uma alma preocupada foi cutucar o amigo que dormia, e ele foi rude, pois estava sonolento… tivemos que correr e apaziguar, pois achei que até polícia iria dar nesta hora… no ônibus, o papel higiênico caiu da mochila e saiu rolando pelo corredor, e todo mundo ficou rindo da gente…

Na rodoviária não havia mais passagens disponíveis, e tivemos que ir em um ônibus mais simples, que trafegava por rotas muito mais longas… no ônibus, tinha porco, galinha, até pato… uma pessoa carregava farinha e o saco rasgou… meu amigo ficou branco como um fantasma… estradas de chão, uma poeira danada, um calor miserável, uma viagem que não acabava…

Quando chegamos na cidade, ainda mais de hora por caminhar… carregados de mochilas e mantimentos… sem um almoço decente e um banho há várias horas… um sol de rachar pedra… paramos onde as vacas bebiam água, que era a única coisa com telhado no caminho… um cheiro de merda de dar dor de cabeça… atravessando um campo, um sapo do tamanho de uma bola de futebol nos deu um susto… pensamos em pegar uns limões em uma plantação, mas algo que parecia uma cobra nos desanimou…

É, – disse o mestre – não foi a melhor viagem de sua vida. Mas você lembra o que você pensou quando chegou ao destino ?

Que aqueles morros pareciam uma grande pintura envolvendo a gente e que não se via sequer torre de transmissão.

O lugar era bonito, não ? – perguntou o mestre.

Se era ! O rio descia suave, límpido, entre as pedras. As árvores vergavam sobre o rio, dando sombra, mas o sol era brando e generoso. O pôr do sol entre as montanhas, que de tão altas, fazia com que ele ocorresse cedo demais, e era um espetáculo. E a noite, meu Deus ! Tantas estrelas e tão baixas que parecia que dava para pegá-las com as mãos !!!

Então disse o mestre – Era só isso que eu queria que você lembrasse: que o caminho por vezes é duro, mas que o destino pode ser maravilhoso.

Mas não foi tudo só alegria…

Não, não foi. Nunca é. – disse o mestre.

Lá, furtaram nossos tênis.

Ali, você viu um tipo de maldade: fazer a alguém o que você não quer que façam a você.

Mas um dos meus amigos, que tinha emprego, comprou sandálias iguais, simples mas aceitáveis, para todos nós, antes de pegarmos o ônibus de volta.

Ali, você viu um tipo de justiça: prover aos próximos nada menos do que você aceita para si mesmo.

E ainda teve aquele senhor, que aceitou nos vender a passagem dele, mesmo ficando para ir mais tarde – só havia duas vagas, e nós éramos três.

Ali você viu um tipo de altruísmo: fazer por alguém o que você gostaria que um dia fizessem por você.

Parte da regra fundamental do maior ser que já pisou neste planeta é bem básica: trate o próximo como você gostaria de ser tratado. Simples assim.

Mas as vezes é tão difícil, mestre… parece que a justiça nunca chega… que tudo que se faz é pouco, e não devidamente reconhecido… que gente que merece menos recebe mais da vida… que a luta não dá todo o resultado esperado, e por vezes parece nem valer a pena… que os ganhos não compensam as perdas…

Não se iluda: a única vida que você realmente conhece, é a sua. Talvez conheça um pouco da vida das pessoas realmente mais próximas, e só. 

Não se esqueça que, da vida da maioria das pessoas, vê-se apenas o que elas querem mostrar. Raras pessoas ocultam as virtudes. A maioria, esconde as mazelas… 

Mas, independente disso, não é pretensão sua querer julgar quem merece mais ou menos? E você não está sendo exigente demais, com tanta coisa boa que já aconteceu na sua vida?

Deus sabe do que você precisa antes de você. A vida as vezes é difícil ? É, mas, de certa forma, você combinou isso com Ele. Você achou que daria conta disso, e Ele acreditou. E continua acreditando.

É difícil, mas não desista. A viagem pode ser penosa, cheia de percalços, mas o destino pode ser maravilhoso.

As vezes, aquele telhadinho fedorento no meio do caminho é tudo o que você realmente precisa. Ou você se julga muito melhor do que aquelas vacas?

Franziu o cenho e olhou surpreso, quase aborrecido, para o mestre – mas ele ria, em estrondosa gargalhada.

Então lembrou que na passagem mais recente dele, onde ele viveu, as vacas eram sagradas… Esse mestre…

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Crônicas da vida: Resistência a mudança. Por motivos não nobres…

Sou um homem simples, de hábitos conservadores.

Frequentava o mesmo barbeiro há quase duas décadas, mas o mesmo infelizmente faleceu.

O filho assumiu o ponto mas, policial militar lotado no interior, nem sempre está disponível.

Com o cabelo beirando o impenteável, minha esposa disse – “Porque você não vai no salão da academia ?”

E assim, enquanto minha esposa e minha caçula faziam uma “escova”, fui cortar o cabelo.

O primeiro impacto foram as cinco TVs de LED agitando o ambiente, passando programação da TV paga – no “meu” salão, é uma TV de tubo, que só pega o sinal da Bandeirantes, exibindo sempre aqueles programas “mundo cão”, e isso com muita chiadeira.

Depois me oferecem água, café ou capuccino – no “meu” salão, é água gelada em copo de geleia, que a gente mesmo pega em uma velha geladeira azul.

A lavagem do cabelo é com água quente, com dois xampus diferentes, em uma cadeira tão confortável que eu dormiria nela – no “meu” salão, é um borrifador.

Distraído, me assusto com o profissional cortando excessos na sobrancelha – no “meu” salão, fora o cabelo, só pelo do nariz. E a pedido…

A conversa trata da execução do brasileiro na Indonésia, e sobre as peculiaridades do sistema judicial daquele país – no “meu” salão, falamos sobre futebol. As vezes, falamos de futebol também. E, vez ou outra, sobre futebol.

As revistas são todas sobre decoração, arquitetura, moda e saúde – no “meu” salão”, são revistas masculinas. E o caderno “Polícia” do jornal popular.

Próximo ao final, cremes, géis, aerossóis e outras coisas, para “dar um aspecto natural ao cabelo” – no “meu” salão, é Leite de Rosas. Quanto mais arder, melhor.

Começo a achar que devo rever meus conceitos, me desapegar dos ranços machistas e ceder ante a modernidade e a qualidade.

Aí vem a conta – cinco vezes o preço que costumo pagar.

Mês que vem, volto ao “meu” salão.

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Crônicas da vida: A mão e o tempo

Depois que minhas filhas nasceram, elas se tornaram a minha principal marcação do tempo. Em cada fase da vida, o tempo era contado de formas diferentes. Mas depois do nascimento delas, tudo ficou para trás.

Recentemente, especifiquei mais ainda esta forma de passar o tempo. Observei a mão de minha filha.

A mão fofinha, a pele nova, lisa e alva – o alvorecer da vida.

Ato contínuo, olhei para minha mão – a pele manchada, de um jeito engelhado que só a pele da mão consegue ter.

Lembro da mão de meu pai. Pele sobre pele, manchas, mais registros do tempo.

É assim – a mão maior ampara a menor, e depois a mão nova ampara a velha.

É o ciclo da vida.

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